quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Amor amarelado


Remexendo no guarda-roupa da minha mãe, encontrei uma caixa. Nem pequena, nem grande, encapada com um papel de presente tão antigo quanto a própria caixa. Suas cores amareladas, desbotadas, guardavam a minha curiosidade em seus segredos. Na verdade, o quarto da minha mãe sempre foi um mundo mágico, como se pertencesse aos contos de fadas, por onde vez ou outra podíamos passear – mas o acesso sempre era temporário. Perceber aquela caixa entre os pertences de minha mãe era como descobrir que um fauno ou uma fada estava escondida atrás da árvore da ilustração do livro de histórias infantis.

Puxei-a com o devido cuidado de quem escava uma relíquia arqueológica. Hesitei por um minuto, a caixa não era minha, estava ali parada há tanto tempo, teria eu o direito de desbravar aquelas terras desconhecidas? A curiosidade era maior que meu tino. Coloquei-a sobre a cama. Com as duas mãos, puxei a velha tampa para cima, tão demoradamente quanto possível, tentando prolongar o máximo possível aquele momento de descoberta. Uma vez aberta a caixa, o brilho dos meus olhos só fez aumentar. Dentro dela, velhos textos, tão amarelados quanto a própria caixa.

Ali me dei conta de que o amor que tenho pelas letras corre em minhas veias por motivos genéticos. Minha mãe era uma mulher de poucos estudos – voltou a estudar quando eu já estava na faculdade. Mas desde muito cedo tinha um amor pela palavra que se materializava no conteúdo da caixa que eu tinha em minhas mãos. Dentro daquele cofre, encontravam-se tesouros que remetiam a minha própria história e à minha origem.

Meus pais namoraram por cartas, já que moravam em cidades diferentes. Organizadas por emissor, minha mãe mantinha seguras dentro da caixa amarelada todas as cartas enviadas ou recebidas por ela. Cartas escritas à luz de lampião, à luz de vela, à luz da saudade... Li algumas cartas como quem busca a origem do universo – o que não era de todo mentira, já que aquele era o meu mundo cujo gênesis se mostrava documentado naqueles papéis. Em meio àqueles envelopes, um pequeno bilhete guardado, datado de alguns meses antes de eu nascer. Deitadas no papel roto, algumas palavras escritas nas letras tortas de minha mãe. Avisava, em meio a erros ortográficos, que havia saído e logo voltaria.

As palavras erradas de minha mãe não são mais as mesmas. O tempo se encarregou de corrigir as distorções da língua culta. Mas a pureza presente no sentimento expresso ao fim do bilhetinho, essa nada nem ninguém conseguiu alterar. Minha mãe continua a amar meu pai da mesma forma que manifestava naquele “amo você, minha vida” amarelado ao pé do papel.

(Andreia Evaristo)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Diário de um assassino

Eu hoje matei alguém. E o interessante é que respiro melhor, nem tenho remorso. E por que teria? Era alguém que já estava cansado de viver, estava viciado em filas, já sem esperança, vivia namorando a depressão.

Comecei a analisar o caso há uns três meses. Vivia o dito sem fazer nada. Deitado em casa de cabeça pra baixo, os pensamentos todos em maresia, os relógios todos parados, os gastos todos mastigados, os gatos todos famintos. Não, ele não merecia viver. Apiedei-me dele, sim, não posso negar, principalmente por sentir que seus momentos de liberdade era assistir “Vale a Pena Ver de Novo”, e o “Ratinho”, mais tarde. Coisa mais triste, meu Deus! Acho até que no princípio ele nem gostava. Mas foi ficando parecido com um uso de maconha. Você sabe que não presta, mas continua sorrindo.

Eu devo agradecer a minha vida ao que ele era. Se não tivesse acabado com ele, o que seria de mim sem estas coisas? E o mais engraçado, ainda, era que ele já vinha me percebendo. Ele antevia até como eu era, como eu seria, como eu sou e como fui. Ele, a vítima, que não conhecia ainda nada do que agora eu conheço, era um Zé Ninguém, um Seu Coisa, um desesperado. Não enxergava nada, alienado mais que todos os sinônimos desta palavra. Era tão resoluta a sua condição de dispensável, e de cansaço, que ele mesmo queria que eu o apagasse.

Segunda confissão, ele me pediu um dia, num grito, seco, e só um: “Mate-me”. Depois caiu no choro. Depois abriu quatro garrafas. Depois saiu, todas estavam vazias. Nas ruas, as ruas estavam vazias. Os bares estavam vazios. Os becos estavam vazios. Seus amigos estavam vazios. Bosta, de desinformado. Não sabia ele que era Dia de Finados, e ninguém em nada mexia, e que se fosse visto, seria confundido com um fantasma; e isso ele não era?

Eu matei uma pessoa para salvá-la. Ela não se aguentava mais. Recebia mais nãos que um promotor a procurar por provas. Era ridicularizada, todos riam dela, e até aqueles, cansados de dar conselhos, lhe davam as costas. Ela não merecia mais viver. Não merecia viver aquele pedaço de pano, que não reconhecia etiquetas, que nunca ouvira falar em Dostoievsky, que podia ser facilmente ludibriado por uma criança atrevida. Até que no dia 7 de setembro de 1973 ela foi contundente. Tinha 38 anos quando morreu.

Era uma sexta-feira, oito horas, ela a primeira da fila (sempre viciada em filas), quando adentrou à secretaria e matriculou-se na escola pela primeira vez. Naquele dia, ela morreu. Morreu mais um analfabeto, para nascer, na mesma hora, uma nova pessoa, que a partir daquele dia, entre as minhas histórias, começou diariamente, a matar a ignorância, para fazer nascer sempre outra mais inteligente.

Meu nome é livro: Dou-lhe uma vida nova em seu lugar.

Mato você. Mas ressuscito.

(M. de Silva e Silva)

Fonte: ANotícia

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Lixo


Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612.
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?