Comecei a analisar o caso há uns três meses. Vivia o dito sem fazer nada. Deitado em casa de cabeça pra baixo, os pensamentos todos em maresia, os relógios todos parados, os gastos todos mastigados, os gatos todos famintos. Não, ele não merecia viver. Apiedei-me dele, sim, não posso negar, principalmente por sentir que seus momentos de liberdade era assistir “Vale a Pena Ver de Novo”, e o “Ratinho”, mais tarde. Coisa mais triste, meu Deus! Acho até que no princípio ele nem gostava. Mas foi ficando parecido com um uso de maconha. Você sabe que não presta, mas continua sorrindo.
Eu devo agradecer a minha vida ao que ele era. Se não tivesse acabado com ele, o que seria de mim sem estas coisas? E o mais engraçado, ainda, era que ele já vinha me percebendo. Ele antevia até como eu era, como eu seria, como eu sou e como fui. Ele, a vítima, que não conhecia ainda nada do que agora eu conheço, era um Zé Ninguém, um Seu Coisa, um desesperado. Não enxergava nada, alienado mais que todos os sinônimos desta palavra. Era tão resoluta a sua condição de dispensável, e de cansaço, que ele mesmo queria que eu o apagasse.
Segunda confissão, ele me pediu um dia, num grito, seco, e só um: “Mate-me”. Depois caiu no choro. Depois abriu quatro garrafas. Depois saiu, todas estavam vazias. Nas ruas, as ruas estavam vazias. Os bares estavam vazios. Os becos estavam vazios. Seus amigos estavam vazios. Bosta, de desinformado. Não sabia ele que era Dia de Finados, e ninguém em nada mexia, e que se fosse visto, seria confundido com um fantasma; e isso ele não era?
Eu matei uma pessoa para salvá-la. Ela não se aguentava mais. Recebia mais nãos que um promotor a procurar por provas. Era ridicularizada, todos riam dela, e até aqueles, cansados de dar conselhos, lhe davam as costas. Ela não merecia mais viver. Não merecia viver aquele pedaço de pano, que não reconhecia etiquetas, que nunca ouvira falar em Dostoievsky, que podia ser facilmente ludibriado por uma criança atrevida. Até que no dia 7 de setembro de 1973 ela foi contundente. Tinha 38 anos quando morreu.
Era uma sexta-feira, oito horas, ela a primeira da fila (sempre viciada em filas), quando adentrou à secretaria e matriculou-se na escola pela primeira vez. Naquele dia, ela morreu. Morreu mais um analfabeto, para nascer, na mesma hora, uma nova pessoa, que a partir daquele dia, entre as minhas histórias, começou diariamente, a matar a ignorância, para fazer nascer sempre outra mais inteligente.
Meu nome é livro: Dou-lhe uma vida nova em seu lugar.
Mato você. Mas ressuscito.
(M. de Silva e Silva)
Fonte: ANotícia
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